quarta-feira, 23 de agosto de 2017

O CORTIÇO (fragmento da obra)

O Cortiço

Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz e pouco calor.

As tinas estavam abandonadas; os coradouros despidos. Tabuleiros e tabuleiros de roupa engomada saiam das casinhas, carregados na maior parte pelos filhos das próprias lavadeiras que se mostravam agora quase todas de fato limpo; os casaquinhos brancos avultavam por cima das saias de chita de cor. Desprezavam-se os grandes chapéus de palha e os aventais de aniagem; agora as portuguesas tinham na cabeça um lenço novo de ramagens vistosas e as brasileiras haviam penteado o cabelo e pregado nos cachos negros um ramalhete de dois vinténs; aquelas trancavam no ombro xales de lã vermelha, e estas de crochê, de um amarelo desbotado. Viam-se homens de corpo nu, jogando a placa, com grande algazarra. Um grupo de italianos, assentado debaixo de uma árvore, conversava ruidosamente, fumando cachimbo. Mulheres ensaboavam os filhos pequenos debaixo da bica, muito zangadas, a darem-lhes murros, a praguejar, e as crianças berravam, de olhos fechados, esperneando. A casa da Machona estava num rebuliço, porque a família ia sair a passeio; a velha gritava, gritava Nenen, gritava o Agostinho. De muitas outras saiam cantos ou sons de instrumentos; ouviam-se harmônicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta melodia era de vez em quando interrompida por um ronco forte de trombone.

Os papagaios pareciam também mais alegres com o domingo e lançavam das gaiolas frases inteiras, entre gargalhadas e assobios. À porta de diversos cômodos, trabalhadores descansavam de calça limpa e camisa de meio lavada, assentados em cadeira, lendo e soletrando jornais ou livros; um declamava em voz alta versos de “Os Lusíadas:, com um empenho feroz, que o punha rouco. Transparecia neles o prazer da roupa mudada depois de uma semana no corpo. As casinhas fumegavam um cheiro bom de refogados de carne fresca fervendo ao fogo. Do sobrado do Miranda só as duas últimas janelas já estavam abertas e, pela escada que descia para o quintal, passava uma criada carregando baldes de águas servidas. Sentia-se naquela quietação de dia inútil a falta do resfolegar aflito das máquinas da vizinhança, com que todos estavam habituados. Para além do solitário capinzal do fundo a pedreira parecia dormir em paz o seu sono de pedra; mas, em compensação, o movimento era agora extraordinário à frente da estalagem e à entrada da venda. Muitas lavadeiras tinham ido para o portão, olhar quem passava; ao lado delas o Albino, vestido de branco, com o seu lenço engomado ao pescoço, entretinha-se a chupar balas de açúcar, que comprara ali mesmo ao tabuleiro de um baleiro freguês do cortiço.  
      
Dentro da taverna, os martelos de vinho branco, os copos de cerveja nacional e os dois vinténs de parati ou laranjinha sucediam-se por cima do balcão, passando das mãos do Domingos e do Manuel para as mãos ávidas dos operários e dos trabalhadores, que os recebiam com estrondosas exclamações de pândega. A Isaura, que fora num pulo tomar o seu primeiro capilé, via-se tonta com os apalpões que lhe davam.Leonor não tinha um instante de sossego, saltando de um lado para outro, com uma agilidade de mono, a fugir dos punhos calosos dos cavouqueiros que, entre risadas, tentavam agarrá-la; e insistia na sua ameaça do costume: “que se queixava ao juiz de orfe”, mas não se ia embora, porque defronte da venda viera estacionar um homem que tocava cinco instrumentos ao mesmo tempo, com um acompanhamento desafinado de bombo, pratos e guizos. (AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo, Ática, 2000, p.445)

RESPONDA

1.     O texto é predominantemente descritivo ou narrativo? Justifique sua resposta.
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2.     A descrição da natureza é muito sintética, diferentemente do que ocorre em escritos românticos. No primeiro parágrafo, o narrador faz referência apenas a dois elementos naturais. Que elementos são esses? Como eles estão caracterizados?
Releia o segundo parágrafo do texto antes de responder às questões.
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3.    Qual a atmosfera reinante na cena descrita?
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4.    Esta cena pode ser dividida em duas partes, de acordo com a predominância de elementos visuais ou auditivos. Delimite cada uma dessas partes.
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5.    O narrador refere-se de maneira indireta a dois complementos do vestuário utilizados pelas lavadeiras nos dias de trabalho. Que complementos são esses?
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6.    Transcreva desse parágrafo dois substantivos abstratos e um advérbio de modo que sugerem grande barulho, agitação, confusão.
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7.    Que recursos o narrador utiliza para dar à cena ideia de movimento?
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Releia o terceiro parágrafo antes de responder as questões que seguem.

8.    Nesse parágrafo, o narrador acrescenta informações que demonstram que o lazer dos trabalhadores não se resumia a descansar e a ir à taverna. Que informações são essas?
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9.    Além dos componentes visuais e auditivos, aparece, nesse parágrafo, outro tipo de elemento sensorial.

a)    A qual dos sentidos ele corresponde?
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b)   Transcreva do texto a frase ou expressão que justifique sua resposta.
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REFERÊNCIA:


FARACO, C. E. & MOURA, F.  Português Projetos, V. U. São Paulo: Ática, 2005. (adaptação)

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