domingo, 20 de agosto de 2017

O CORTIÇO – ALUÍSIO AZEVEDO



1.  CONTEXTO SOCIAL E POLÍTICO DA ÉPOCA:

O início do século XIX no Brasil é marcado, em 1808, pela chegada da família real portuguesa, que fugia do conflito entre a França napoleônica e a Inglaterra. No Brasil, ainda, apreciava-se a arte barroco-colonial.

A transferência da corte portuguesa para o Brasil e a elevação da colônia a Reino Unido e sede do governo metropolitano renovaram o país. Nessa cidade o soberano português começou uma série de reformas administrativas, socioeconômicas e culturais, para adaptá-la às necessidades dos nobres que vieram com ele e sua família. Assim, foram criadas as primeiras fábricas e fundadas instituições como o Banco do Brasil, a Biblioteca Real, o Museu Real e a Imprensa Régia.

No século XIX, após um crescimento contínuo da grande lavoura de exportação (cana-de-açúcar), que se confundiu com a expansão do café pelas serras e vales do interior da província do Rio de Janeiro, começaram a aparecer sinais evidentes de que a agricultura brasileira vivia uma profunda crise. Esta crise era atribuída, sobretudo, à falta de braços (pelo fim da escravidão) e de capitais, além do atraso técnico e administrativo na condução das lavouras.

A maioria dos grandes proprietários acreditava na exploração extensiva dos sistemas de produção, através da expansão das fronteiras agrícolas, abandonando as lavouras atuais quando estas não tivessem mais produtividade satisfatória e a busca de novas áreas reiniciando, assim, o ciclo de exploração da fertilidade dos solos. Esta era a cultura nômade de expropriação do solo brasileiro, na qual pouco se pensava nas consequências negativas dos manejos agropecuários empregados, especialmente no que diz respeito à destruição florestal.

Ø  teorias de nova interpretação da realidade: Positivismo, Determinismo, Socialismo Científico e Evolucionismo;
Ø  no Brasil, campanha abolicionista a partir de 1850 que culmina com a Lei Áurea em 1888;
Ø  fundação do Partido Republicano nacional após a Guerra do Paraguai;
Ø  decadência da monarquia brasileira;
Ø  fim da mão de obra escrava e sua substituição por trabalho assalariado;
Ø  imigrantes europeus para a lavoura cafeeira;

Ø  economia mais voltada para o mercado externo, sem colonialismo.

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2 .  ESPAÇO:

O uso do espaço urbano pelas personagens de “O cortiço” permite configurar a obra de Aluísio Azevedo como um romance de localização especificamente carioca. Nele, são flagradas a cidade e a sociedade em estado de mutação, quando se adapta para o ambiente urbano a dicotomia de casa grande e senzala, agora traduzida pelos contrastes simbolizados pela oposição entre cortiço e sobrado. Assim, a preocupação com a veracidade, própria do realismo-naturalismo, fornece um painel da cidade, em momento de profunda transformação social, cultural, humana. Graças à minuciosa pesquisa que empreendeu, Aluísio Azevedo transformou seu romance em um documentário não só sobre a acumulação de capital como também sobre a cidade do Rio de Janeiro, através da vida, trabalho, moradia e lazer de seus habitantes, sejam eles pertencentes às camadas aristocráticas ou às populares.

Pode-se começar a proceder a uma análise sociológica de “O Cortiço” pelo exame dos espaços físicos: o cortiço e o sobrado onde seu enredo se desenvolve, buscando compreender como se projeta a relação personagem versus ambiente, bem como as relações sociais presentes na obra sob a ótica determinista de Aluísio Azevedo.

“Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a dois passos da obrigação [...] Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem". (Aluísio Azevedo. “O Cortiço”, cap. I, p.21).

“Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da venda, separada desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado''. (Idem, ibidem, cap.I, p.13).

O espaço tomado como instrumento de análise apresenta vários aspectos. Dentre eles, destaca-se a noção de espacialidade dimensional que pode ser mensurável e divide-se em vertical e horizontal.   A ideia de verticalidade se relaciona com o espaço divino ou sobrenatural, a noção de horizontalidade opõe-se a verticalidade, uma vez que a horizontalidade é própria do espaço humano ou natural.

Dessa forma, o romance naturalista busca muito mais que compor uma narrativa, mas, projetar as personagens e suas ações numa posição em que os espaços falam por si só carregando toda ideologia determinista de que o homem é produto do meio.

De início, constata-se um espaço amplo e complexo, que pode ser inicialmente caracterizado pela função específica para o qual foi construído: habitação popular, o que fica explícito pelo “frontispício” de sua construção, sinalizando também para o teor das relações humanas que se dão em seu bojo, pelo próprio aspecto material de sua “auto-identificação”:

“Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem. Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que separavam a venda do sobrado do Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande portão no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas, por cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta encarnada e sem ortografia: Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras”.                                                                                 (AZEVEDO, 2000: 26)


3.  TEMPO:

O tempo narrativo acontece no final o século XIX e a narração é linear, ou seja, predomina nele o que chamamos de tempo cronológico, linearidade ou diacronia temporal. Essa linearidade, no entanto, é rompida vez ou outra com a inserção de alguns flashbacks, rememorações ou digressões. Essas ocorrências não colaboram para a quebra da referida linearidade e o romance, portanto, deve ser considerado cronologicamente disposto.
Aliás, o romance inicia-se com um flashback para explicar como João Romão iniciou seus negócios.

4.  LINGUAGEM:

Uma análise estilística apresenta a linguagem de O Cortiço, em sua plurivalência de nacionalidades: mostra como o francês, o italiano, o português de Portugal, o falar do cortiço, o falar dos salões constituindo conjuntos que integralizam a língua brasileira num sentido mais amplo.
Sua língua é mestiça como suas personagens e se espalha pelo simples e pelo complexo. Por aí se poderia chegar a tocar de novo no problema da ideologia que configurou o romance. Ideologia esta que tanto mais se configura quanto mais se sabe que a arte de Aluísio se voltava para o receptor. Sua produção tinha um endereço certo: o jornal, o teatro e uma grande massa de leitores.

5.   FOCO NARRATIVO:

O foco narrativo é em terceira pessoa, muito comum à escola literária realista-naturalista. Fica mais fácil, dessa forma, relatar de maneira objetiva os fatos, os acontecimentos, e fazer a denúncia social de maneira isenta e impessoal.
Além do narrador do tipo observador, pode-se encontrar também o narrador onisciente, que nos traz informações sobre o estado de espírito das personagens.


6.  PERSONAGENS:

Quando Aluísio de Azevedo queria compor cenários, criar personagens, estereótipos, tipos humanos fazia um laboratório em lugares aos da sua imaginação, conversava com as pessoas que ali viviam, envolvia-se com seus problemas, seus hábitos, sua origem e ia montando o quebra-cabeça de sua obra. Era o crítico que, impiedosamente, compunha a sinfonia de pessoas de classes sociais inferiores, marginalizados, discriminadas; exercendo seus temas favoritos: traição, as taras sexuais, os preconceitos raciais, as patologias sociais.

Muitas vezes, porque era um desenhista que se esmerava em tudo quanto fazia, compunha cenas e personagens em papel-cartão, estudando quais aspectos seriam mais realistas como acontecimentos, colocando tudo diante de si como se fossem acontecimentos vívidos e planejando, a partir de seus desenhos, a continuidade das histórias que inventada a partir da vida.
Aluísio Azevedo sofreu larga influência do francês Émile Zola, cuja qualidade máxima é, por excelência, representar a realidade com rigor científico. Da personagem João Romão, por exemplo, traça um perfil que o coloca como uma metonímia de todas as criaturas que imigram, sofrem e perdem-se no sentido de apenas possuir.  
 
Em “O cortiço”, ocorre sistematicamente um fenômeno chamado zoomorfização (animalização) dos seres humanos. O crítico literário Antonio Candido, no texto “De cortiço a cortiço”, presente no livro “O discurso e a cidade”, observa que, no Naturalismo, existe “uma tendência de conceber a vida como a soma das atividades do sexo e da nutrição, sem outras esferas significantes”. Sendo assim, não há como negar que na escola literária em questão o ser humano é flagrado no conjunto social a que pertence, com ênfase nas baixas classes sociais, e, ali, é exposto ao leitor da forma mais primitiva e animalizada: comem, bebem, fazem sexo, brigam, matam e morrem.

São criaturas grosseiras, seduzidas pelos instintos, condenadas a refletir em seus comportamentos o universo coletivo do ambiente que habitam; por isso, o narrador apresenta-nos os moradores daquele local e seus vícios, aproximando-os do mundo animal: sensualidade, preguiça, instintos à flor da pele.

É importante ressaltar, ainda e principalmente, que o cortiço não é apenas um ambiente, espaço onde os acontecimentos se dão. De certa forma, especial e insistente, é tratado pelo narrador como a principal personagem do romance.


7.  RESUMO:

O livro narra inicialmente a saga de João Romão rumo ao enriquecimento. Para acumular capital, ele explora os empregados e se utiliza até do furto para conseguir atingir seus objetivos. João Romão é o dono do cortiço, da taverna e da pedreira. Sua amante, Bertoleza, o ajuda de domingo a domingo, trabalhando sem descanso.

Em oposição a João Romão, surge a figura de Miranda, o comerciante bem estabelecido que cria uma disputa acirrada com o taverneiro por uma braça de terra que deseja comprar para aumentar seu quintal. Não havendo consenso, há o rompimento provisório de relações entre os dois.

Com inveja de Miranda, que possui condição social mais elevada, João Romão trabalha ardorosamente e passa por privações para enriquecer mais que seu oponente. Um fato, no entanto, muda a perspectiva do dono do cortiço. Quando Miranda recebe o título de barão, João Romão entende que não basta ganhar dinheiro, é necessário também ostentar uma posição social reconhecida, frequentar ambientes requintados, adquirir roupas finas, ir ao teatro, ler romances, ou seja, participar ativamente da vida burguesa.

No cortiço, paralelamente, estão os moradores de menor ambição financeira. Destacam-se Rita Baiana e Capoeira Firmo, Jerônimo e Piedade. Um exemplo de como o romance procura demonstrar a má influência do meio sobre o homem é o caso do português Jerônimo, que tem uma vida exemplar até cair nas graças da mulata Rita Baiana. Opera-se uma transformação no português trabalhador, que muda todos os seus hábitos.

A relação entre Miranda e João Romão melhora quando o comerciante recebe o título de barão e passa a ter superioridade garantida sobre o oponente. Para imitar as conquistas do rival, João Romão promove várias mudanças na estalagem, que agora ostenta ares aristocráticos.

O cortiço todo também muda, perdendo o caráter desorganizado e miserável para se transformar na Vila João Romão.

O dono do cortiço aproxima-se da família de Miranda e pede a mão da filha do comerciante em casamento. Há, no entanto, o empecilho representado por Bertoleza, que, percebendo as manobras de Romão para se livrar dela, exige usufruir os bens acumulados a seu lado.

Para se ver livre da amante, que atrapalha seus planos de ascensão social, Romão a denuncia a seus donos como escrava fugida. Em um gesto de desespero, prestes a ser capturada, Bertoleza comete o suicídio, deixando o caminho livre para o casamento de Romão.

Lista de personagens

Os personagens da obra são psicologicamente superficiais, ou seja, há a primazia de tipos sociais. Os principais são:

João Romão: taverneiro português, dono da pedreira e do cortiço. Representa o capitalista explorador.

Bertoleza: quitandeira, escrava cafuza que mora com João Romão, para quem ela trabalha como uma máquina.

Miranda: comerciante português. Principal opositor de João Romão. Mora num sobrado aburguesado, ao lado do cortiço.

Jerônimo: português “cavouqueiro”, trabalhador da pedreira de João Romão, representa a disciplina do trabalho.

Rita Baiana: mulata sensual e provocante que promove os pagodes no cortiço. Representa a mulher brasileira.

Piedade: portuguesa que é casada com Jerônimo. Representa a mulher europeia.

Capoeira Firmo: mulato e companheiro que se envolve com Rita Baiana.

Arraia-Miúda: representada por lavadeiras, caixeiros, trabalhadores da pedreira e pelo policial Alexandre.


8.  O AUTOR:

Aluísio Azevedo (A. Tancredo Gonçalves de A.), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata. Nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913. É o fundador da Cadeira n. 4 da Academia Brasileira de Letras.

Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de d. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um rico e ríspido comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.

Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se, fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses "bonecos" que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.

A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance “Uma lágrima de mulher”, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança “O mulato”, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense, não só pela crua linguagem naturalista, mas, sobretudo, pelo assunto de que tratava: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pode fazer o caminho de volta para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.

Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção: romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.

Em 1895 encerrou a carreira de romancista e ingressou na diplomacia. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, que Aluísio adotou. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1a classe, sendo removido para Assunção. Depois foi para Buenos Aires, seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado definitivamente.

REFERÊNCIAS



SUGESTÃO DE LEITURA:



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